domingo, 27 de dezembro de 2015

Alma e sonho



Alma e sonho
Há alma tão quente / que a alma da gente / vai logo encontrar. / Há alma tão boa / que num momento voa / para me procurar. / Há alma tão fina / pura e cristalina / que é como cristal. / Há alma envolvente / tão rubra e ardente / muito especial. / Mas há alma impossível / que até acho incrível / seu jeito de amar. / E há alma amorosa / e tão poderosa / pra me aconchegar. / Mas há alma atrevida / ladina e bandida / que até nos cativa. / E há alma tão viva / soberba e altiva / pra me confortar. / E se há alma é cristal / é tão terna afinal / que me leva a sonhar. / Sonhar com essa alma / que chega e me acalma / quando a sombra ameaça. / Mas há alma devassa / que vem e que passa / sem identidade / mas deixa saudade. /.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

As lições de Chico Buarque




Do jornalista Paulo Moreira Leite
Entre humanos que relincham e outros capazes de zunir, num comportamento próprio de quadrúpedes morais, mais uma vez Chico Buarque de Holanda assegurou seu lugar na história do Brasil e dos brasileiros.
A cena vista e gravada num fim de noite no Rio de Janeiro é apenas a confirmação recente de que Chico é um artista que sabe qual é seu lugar em cada momento de nossa história.
Comporta-se dessa maneira há meio século, seja através da música, dos versos de gênio, de uma literatura cada vez mais apurada e espetacular. Age assim pela postura política de quem recusa o lugar de artista-mercadoria e sabe responder aos percalços e tragédias da conjuntura histórica com clareza, com valentia e uma auto ironia que o acompanha tanto nas horas agradáveis como nas mais difíceis, como se descobre pelo depoimento de um de seus amigos de “Chico: um artista brasileiro”, documentário que é uma obra-prima obrigatória para todo brasileiro preocupado em entender o seu país em 2015.
Mais do que um poeta, um grande escritor recém-confirmado, Chico Buarque é uma das raras consciências da nação.   Ajudou e ajuda os brasileiros a entender o país em que vivem. Por qualquer meio utilizado, seus enredos convergem para a defesa das grandes maiorias, a solidariedade diante dos explorados e excluídos.
Sempre denunciou o regime militar, combateu a censura,  a brutalidade covarde da ditadura e o empobrecimento dos anos 1960 e 1970.  Antes e depois da democratização, atuou para defender a primazia dos direitos e interesses dos que não tem direito à palavra, o que explica a importância do pobre, do negro, do explorado, em sua música, na literatura, no engajamento político direto, num tratamento frequentemente solidário e até carinhoso em alguns momentos. Entendeu o ponto de vista mulher, muito antes que se tornasse moda. Defendeu – como o filme mostra num depoimento surpreendente do início da carreira – os direitos de homossexuais quando palavras como veado e bicha eram parte do vocabulário familiar.
Acima de tudo recusou as clássicas tentativas de acomodação com os interesses do alto, o que se reflete num comportamento que rejeita as vulgaridades típicas que a sociedade contemporânea reserva aos artistas de sucesso – a começar pelo inevitável beija-mão dos ricos e poderosos, entre eles a TV Globo.

Mostrando que aquilo que parece inevitável pode ser evitado, Chico mostrou uma força moral surpreendente no país da dialética da malandragem. Tem compromissos claros. Nunca deixou de ter um lado e sabemos muito bem que lado é esse – e é isso, mais do que qualquer outro fator, que explica vários momentos de sua carreira, inclusive a agressão de anteontem.   
 Atacado, cercado, naqueles movimentos tensos que podem descambar para uma situação fora de controle, Chico soube enfrentar com sorrisos e ironias uma provocação tipicamente fascista. Ouviu expressões inaceitáveis de ódio (“você é um merda, quem apoia o PT é um merda”) e ressentimento (“para quem mora em Paris é fácil”).
 Manteve a postura adequada ao dizer que cada um tem direito a liberdade de sua opinião (“eu acho o PSDB bandido. E aí?”). No dia seguinte, ao postar a música "Vai trabalhar, vagabundo", lembrou a matriz moral de uma elite que jamais aceitou pegar no pesado. Três séculos e meio de escravidão nos contemplam. Seu nome é o desprezo pela democracia, a vontade indomável de recuperar privilégio, o desprezo pelos de baixo.
Meses depois de a filósofa Marcia Tiburi escrever “Como conversar com um fascista”, Chico Buarque saiu da teoria para o terreno áspero da prática.
A experiência ensina que a bestialidade fascista costuma ser uma ação preparatória para atos de violência física, aberta e escancarada. É uma faísca a espera de uma chama capaz de produzir uma catarse.
Ao contrário de uma briga de rua, dos conflitos entre gangues adolescentes e mesmo guerras por ponto de tráfico, que se equivalem num mesmo universo entre interesses idênticos e apenas concorrentes, a violência fascista pretende assumir sempre um caráter político punitivo. É aí, pela pancadaria sem freios, até selvagem, que tenta produzir um espetáculo para sua ideia de superioridade com direito a prevalecer com base na força bruta.
Simula um discurso de redenção num universo que – de seu ponto de vista aloprado – se tornou incapaz de aceitar indispensáveis remédios civilizatórios. Tenta acobertar a própria brutalidade, de caráter criminoso, a partir de um discurso que busca apontar supostas falhas morais, incorrigíveis, inaceitáveis e vergonhosas, no outro. Seu discurso tem como destino a morte, numa agressão animalesca que quer fingir que não se trata de pura bestialidade doentia, tentando justificar-se pelas falhas e faltas do outro. É pura barbárie, mas pretende ser castigo. Quer dar uma lição.
Num flerte que nasceu pela ilusão suicida de que os movimentos fascistas podem ser úteis a um negócio que eu sempre imaginei que precisava da liberdade de expressão para sobreviver, nossos meios de comunicação fizeram um papel vergonhoso. Numa clássica banalização do mal, pois precisam das bestas-feras para alimentar um golpe de Estado disfarçado de impeachment, editaram um noticiário com verbos e palavras que invertem os papéis, transformando a vítima em agressor. É preocupante, quando se recorda a estatura cultural de Chico Buarque de Holanda. Nem ele precisa ser poupado, ensina-se. Vale-tudo – essa foi a mensagem no dia seguinte.
Quem deu a boa lição foi Chico e isso não surpreende, para quem já assistiu “Chico: um artista brasileiro”. Não vou lembrar, aqui, as inúmeras passagens maravilhosas e diversas cenas pouco conhecidas da biografia de Chico Buarque. Só isso já vale o filme – mas o documentário tem mais. Tem ideias, reflexões.
Fico na principal, que tem a ver com o Brasil de hoje. Num depoimento sobre um país envolvido com um ambiente de desencanto e inconformismo com a economia, a política, a cultura, Chico Buarque formula uma visão indispensável.
Diz que a situação “piorou porque melhorou”.
Você entendeu: as mudanças e progressos ocorridos num período recente, quando as maiorias conquistaram direitos e garantias impensáveis em qualquer época, mudaram o país de alto a baixo. Mas essas mudanças trouxeram contrapartidas que, do ponto de vista de quem já se encontrava do outro lado da nossa imensa avenida social, nem sempre são confortáveis, muito menos bem- vindas. Muitas podiam ser corretas, mas nem sequer ocorreram como se tinha imaginado. E agora? – Pergunta o filme.
Falando dos anos de sua juventude, em boas escolas, numa família com vida confortável, Chico responde. Lembra a bossa nova, dizendo que, para seu gosto, era uma música muito mais agradável do que a fase atual da música brasileira. Admite, contudo, que fala de um ponto de vista de uma determinada elite, com certa formação e hábitos próprios de quem habita determinados patamares da pirâmide social.
Deixa claro, com sinceridade, que prefere viver num país onde todos possam expressar a música a seu gosto e a seu estilo – mesmo que isso não seja o mais agradável a seus ouvidos. Essa é a opção.
Você sai do cinema convencido de que, como a maioria das pessoas, Chico tem muitas críticas ao que ocorre no país de hoje. Nem por isso, contudo, perdeu as referências de sua história nem os valores que nos ensinou a preservar – mesmo quando eram impronunciáveis e até malditos. Essa é sua força, seu lugar.
Recusa-se a negociar princípios democráticos em nome do gosto pessoal.  

Essa é a lição que se deve aprender.
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“O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante e fascinada.”