Do jornalista Paulo Moreira Leite
Entre humanos que relincham e outros capazes de
zunir, num comportamento próprio de quadrúpedes morais, mais uma vez Chico
Buarque de Holanda assegurou seu lugar na história do Brasil e dos brasileiros.
A cena vista e gravada num fim de noite no Rio
de Janeiro é apenas a confirmação recente de que Chico é um artista que sabe
qual é seu lugar em cada momento de nossa história.
Comporta-se dessa maneira há meio século, seja
através da música, dos versos de gênio, de uma literatura cada vez mais apurada
e espetacular. Age assim pela postura política de quem recusa o lugar de
artista-mercadoria e sabe responder aos percalços e tragédias da conjuntura
histórica com clareza, com valentia e uma auto ironia que o acompanha tanto nas
horas agradáveis como nas mais difíceis, como se descobre pelo depoimento de um
de seus amigos de “Chico: um artista brasileiro”, documentário que é uma obra-prima
obrigatória para todo brasileiro preocupado em entender o seu país em 2015.
Mais do que um poeta, um grande escritor recém-confirmado,
Chico Buarque é uma das raras consciências da nação. Ajudou e ajuda
os brasileiros a entender o país em que vivem. Por qualquer meio utilizado,
seus enredos convergem para a defesa das grandes maiorias, a solidariedade
diante dos explorados e excluídos.
Sempre denunciou o regime militar, combateu a
censura, a brutalidade covarde da ditadura e o empobrecimento dos anos
1960 e 1970. Antes e depois da democratização, atuou para defender a
primazia dos direitos e interesses dos que não tem direito à palavra, o que
explica a importância do pobre, do negro, do explorado, em sua música, na
literatura, no engajamento político direto, num tratamento frequentemente
solidário e até carinhoso em alguns momentos. Entendeu o ponto de vista mulher,
muito antes que se tornasse moda. Defendeu – como o filme mostra num depoimento
surpreendente do início da carreira – os direitos de homossexuais quando
palavras como veado e bicha eram parte do vocabulário familiar.
Acima de tudo recusou as clássicas tentativas de
acomodação com os interesses do alto, o que se reflete num comportamento que
rejeita as vulgaridades típicas que a sociedade contemporânea reserva aos
artistas de sucesso – a começar pelo inevitável beija-mão dos ricos e
poderosos, entre eles a TV Globo.
Mostrando que aquilo que parece inevitável pode
ser evitado, Chico mostrou uma força moral surpreendente no país da dialética
da malandragem. Tem compromissos claros. Nunca deixou de ter um lado e sabemos
muito bem que lado é esse – e é isso, mais do que qualquer outro fator, que
explica vários momentos de sua carreira, inclusive a agressão de anteontem.
Atacado, cercado, naqueles movimentos
tensos que podem descambar para uma situação fora de controle, Chico soube
enfrentar com sorrisos e ironias uma provocação tipicamente fascista. Ouviu
expressões inaceitáveis de ódio (“você é um merda, quem apoia o PT é um merda”)
e ressentimento (“para quem mora em Paris é fácil”).
Manteve a postura adequada ao dizer que
cada um tem direito a liberdade de sua opinião (“eu acho o PSDB bandido. E aí?”).
No dia seguinte, ao postar a música "Vai trabalhar, vagabundo",
lembrou a matriz moral de uma elite que jamais aceitou pegar no pesado. Três
séculos e meio de escravidão nos contemplam. Seu nome é o desprezo pela
democracia, a vontade indomável de recuperar privilégio, o desprezo pelos de
baixo.
Meses depois de a filósofa Marcia Tiburi
escrever “Como conversar com um fascista”, Chico Buarque saiu da teoria para o
terreno áspero da prática.
A experiência ensina que a bestialidade fascista
costuma ser uma ação preparatória para atos de violência física, aberta e
escancarada. É uma faísca a espera de uma chama capaz de produzir uma catarse.
Ao contrário de uma briga de rua, dos conflitos
entre gangues adolescentes e mesmo guerras por ponto de tráfico, que se
equivalem num mesmo universo entre interesses idênticos e apenas concorrentes,
a violência fascista pretende assumir sempre um caráter político punitivo. É
aí, pela pancadaria sem freios, até selvagem, que tenta produzir um espetáculo
para sua ideia de superioridade com direito a prevalecer com base na força
bruta.
Simula um discurso de redenção num universo que
– de seu ponto de vista aloprado – se tornou incapaz de aceitar indispensáveis
remédios civilizatórios. Tenta acobertar a própria brutalidade, de caráter
criminoso, a partir de um discurso que busca apontar supostas falhas morais,
incorrigíveis, inaceitáveis e vergonhosas, no outro. Seu discurso tem como
destino a morte, numa agressão animalesca que quer fingir que não se trata de
pura bestialidade doentia, tentando justificar-se pelas falhas e faltas do outro.
É pura barbárie, mas pretende ser castigo. Quer dar uma lição.
Num flerte que nasceu pela ilusão suicida de que
os movimentos fascistas podem ser úteis a um negócio que eu sempre imaginei que
precisava da liberdade de expressão para sobreviver, nossos meios de
comunicação fizeram um papel vergonhoso. Numa clássica banalização do mal, pois
precisam das bestas-feras para alimentar um golpe de Estado disfarçado de
impeachment, editaram um noticiário com verbos e palavras que invertem os
papéis, transformando a vítima em agressor. É preocupante, quando se recorda a
estatura cultural de Chico Buarque de Holanda. Nem ele precisa ser poupado,
ensina-se. Vale-tudo – essa foi a mensagem no dia seguinte.
Quem deu a boa lição foi Chico e isso não
surpreende, para quem já assistiu “Chico: um artista brasileiro”. Não vou
lembrar, aqui, as inúmeras passagens maravilhosas e diversas cenas pouco
conhecidas da biografia de Chico Buarque. Só isso já vale o filme – mas o
documentário tem mais. Tem ideias, reflexões.
Fico na principal, que tem a ver com o Brasil de
hoje. Num depoimento sobre um país envolvido com um ambiente de desencanto e
inconformismo com a economia, a política, a cultura, Chico Buarque formula uma
visão indispensável.
Diz que a situação “piorou porque melhorou”.
Você entendeu: as mudanças e progressos
ocorridos num período recente, quando as maiorias conquistaram direitos e
garantias impensáveis em qualquer época, mudaram o país de alto a baixo. Mas
essas mudanças trouxeram contrapartidas que, do ponto de vista de quem já se
encontrava do outro lado da nossa imensa avenida social, nem sempre são
confortáveis, muito menos bem- vindas. Muitas podiam ser corretas, mas nem sequer
ocorreram como se tinha imaginado. E agora? – Pergunta o filme.
Falando dos anos de sua juventude, em boas
escolas, numa família com vida confortável, Chico responde. Lembra a bossa
nova, dizendo que, para seu gosto, era uma música muito mais agradável do que a
fase atual da música brasileira. Admite, contudo, que fala de um ponto de vista
de uma determinada elite, com certa formação e hábitos próprios de quem habita
determinados patamares da pirâmide social.
Deixa claro, com sinceridade, que prefere viver
num país onde todos possam expressar a música a seu gosto e a seu estilo –
mesmo que isso não seja o mais agradável a seus ouvidos. Essa é a opção.
Você sai do cinema convencido de que, como a
maioria das pessoas, Chico tem muitas críticas ao que ocorre no país de hoje.
Nem por isso, contudo, perdeu as referências de sua história nem os valores que
nos ensinou a preservar – mesmo quando eram impronunciáveis e até malditos.
Essa é sua força, seu lugar.
Recusa-se a negociar princípios democráticos em
nome do gosto pessoal.
Essa é a lição que se deve aprender.
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“O fascismo é
fascinante, deixa a gente ignorante e fascinada.”
O artigo em causa foi reproduzido tal qual Paulo Moreira Leite escreveu. - Transcrevi do Blogue do jornalista Roberto Almeida, de Garanhuns - Pernambuco. /.
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