Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 — 20 de março de 1953, Rio
de Janeiro).1 Foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por seu livro Vidas
Secas (1938).
15/03/2013 às 00h00
À procura de Graciliano
Por
Maria Cristina Fernandes | De Palmeira dos Índios (AL)
Na
galeria da Prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano está embaixo, à
direita, ofuscado pelo sol: todos citam os relatórios do escritor, mas ninguém
tem muita familiaridade com a prestação de contas da atual gestão
Um cano estourado jorra
água na escadaria e molha os tornozelos de quem entra. A secura do lugar,
naquela que já é considerada a pior estiagem dos últimos 40 anos, evita que a
recepção à Prefeitura de Palmeira dos Índios fique encharcada.
Dois óleos com moldura
dourada estão pendurados atrás do balcão. Retratam James Ribeiro Calado Sampaio
Monteiro, 42 anos, prefeito reeleito, e José Helenildo Ribeiro Monteiro,
prefeito duas vezes da cidade, morto em 2006, aos 60 anos, no último mês de seu
mandato na Câmara dos Deputados.
Um cartaz afixado na porta
tem um disque denúncia com o brasão federal contra falsos cadastrados no Bolsa
Família: "Fique de olho. Ajude o Bolsa Família a ajudar famílias".
Uma galeria de prefeitos
está distribuída nas duas paredes laterais da sala. A maior delas tem ao meio
novamente James, o 69º prefeito. Está logo acima de Helenildo, contemplado com
dois retratos iguais, um para cada mandato.
Graciliano Ramos de
Oliveira, o 13º prefeito de Palmeira dos Indios, que governou a cidade de 7
janeiro de 1927 a 10 de abril de 1930, está na extremidade inferior direita,
ofuscado pelo sol vindo do janelão aberto para a praça da Independência.
"Nunca tinha visto esse retrato, acho que puseram há pouco tempo",
diz um funcionário de passagem por ali.
Na quarta-feira,
completam-se 60 anos da morte do escritor seco e lúcido, que escrevia cortando
palavras.
Foi daquela casa,
construída em 1919 para abrigar a sede da prefeitura, que Graciliano se lançou
à literatura. Os relatórios com os quais prestaria contas de sua gestão ao
governador de Alagoas iriam parar na imprensa do Rio e cair nas graças do poeta
e editor Augusto Frederico Schmidt.
"Não favoreci ninguém.
Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da
inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter
semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada
na prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não
obtivesse dez votos", escreveu Graciliano ao fim de um dos relatórios.
Foi uma premonição.
Dezesseis anos depois de renunciar à prefeitura, já morando no Rio, filiou-se
ao Partido Comunista e, por insistência dos amigos, candidatou-se à Câmara dos
Deputados por Alagoas. O Estado lhe deu 62 votos. Sem pisar lá, enviou por
escrito discurso eleitoral que começava assim: "Meus raros amigos de
Alagoas".
Os relatórios de prestação
de contas escritos por Graciliano Ramos ao governo de Alagoas caíram nas graças
de poeta e editor no Rio
James Ribeiro, 56º sucessor
de Graciliano, senta-se à mesa de seu gabinete com uma expressão de poucos
amigos. Numa folha afixada à porta da sala, lê-se: "Não entre sem
autorização". Noutra, ao lado: "Banheiro exclusivamente do
prefeito".
Cerca-se de meia dúzia de
assessores e secretários. Outro tanto observa a entrevista em pé. Mantém, sobre
a mesa, a Constituição Federal e o livro "Ética, Direito e Administração
Pública". No pulso direito tem amarrada uma fita azul de Nosso Senhor do
Bonfim.
Indiciado pela Polícia
Federal no inquérito que apura o escândalo dos sanguessugas, Ribeiro foi
acusado de receber propina do empresário Luiz Antonio Vedoin, fornecedor de
ambulâncias. O pai, que exercia mandato de deputado federal, foi inocentado
pela CPI dos Sanguessugas. O atual prefeito, à época seu assessor parlamentar,
seria absolvido da acusação de improbidade administrativa, mas ainda enfrenta
duas ações penais.
Filiado ao PSDB desde que
ingressou na carreira pública, James Ribeiro estudou administração de empresas
e elegeu-se prefeito pela primeira vez aos 38 anos, três a mais do que
Graciliano ao assumir a prefeitura.
Nomeia o governador
Teotônio Vilela (PSDB) e o senador Renan Calheiros (PMDB), nessa ordem, como seus
principais suportes na prefeitura. Diz que não teria conseguido calçamento para
a cidade, Minha Casa Minha Vida ou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) -
que foi inaugurada há dois anos, mas ainda não funciona - sem o apoio de ambos.
"A atividade política está criminalizada", lamenta, em defesa do
presidente do Senado.
Mas é Helenildo sua
principal inspiração na política. O gabinete tem mais uma galeria de fotos do
pai, uma delas com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e abriga ainda a
réplica da placa de inauguração da adutora, batizada com o nome de Helenildo.
Inaugurada em 2009 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda hoje a
adutora carece de bombas e ramais para levar água aos pequenos produtores da
região.
Oito décadas atrás, pai de
prefeito só aparecia por ali soltando fumaça pelas ventas. Corria o ano de
1928. Graciliano Ramos vivia insatisfeito com a ausência de uma lei municipal
que regulamentasse a vida na cidade. Foi buscar papéis do império, de 1865, e
valeu-se de algumas poucas leis já aprovadas para redigir um novo código que
levou à apreciação dos vereadores, então chamados de conselheiros.
Dali resultou o Código
Municipal com 82 artigos. Entre as condutas reprovadas estava a de deixar
animais soltos na área urbana. Pois o fiscal foi dar com porcos de Sebastião
Ramos, comerciante e produtor rural respeitado na cidade, bem no meio da rua.
Constrangido, contou ao prefeito. Graciliano queixou-se porque o fiscal não
atirara nos porcos e mandou lavrar a multa. Feito o pagamento, entregou o
recibo ao pai, que o recebeu sob protestos.
Graciliano Ramos, o
escritor seco e lúcido, que morreu há 60 anos: uma campanha publicitária do
governo de Alagoas já o retratou como o pai da responsabilidade fiscal no país
Foi a Sebastião Ramos que
os políticos da cidade haviam recorrido para vencer as resistências do jovem
comerciante e professor de línguas da cidade, que acabaria eleito como
candidato único com 433 votos, pondo fim a uma crise sucessória iniciada com o
assassinato de um antecessor.
Seu Sebastião, como o filho
o chamava, pagou dobrado a insistência para que o filho aceitasse o cargo.
Um matuto esfarrapado
apareceu um dia na prefeitura para denunciar abusos. O gado do vizinho tinha
invadido sua roça de mandioca. Prejuízo danado. Em vez de indenização, recebera
do vizinho outra invasão do gado, dessa vez acabando com o plantio de verdura.
- O senhor devia ter vindo
há mais tempo. Por que não veio?
- O gado é do pai de
vosmecê.
- Pois fique o senhor
sabendo que prefeito não tem pai nem mãe.
Mandou prender o gado e
chamar o pai.
- Seu Sebastião, eu não
pedi para ser prefeito. O senhor cometeu uma injustiça não mandando reparar os
estragos desse caboclo. Isso dá cadeia. O senhor deve pagar uma multa e os
estragos que o gado fez no roçado.
James Ribeiro, assim como
todos os políticos da cidade, gosta de citar Graciliano, principalmente em
discursos eleitorais. As afinidades eletivas extrapolam os limites da cidade.
Uma campanha publicitária do governo estadual já retratou Graciliano como o pai
da responsabilidade fiscal no país. Só não disse que o homem era comunista.
O atual prefeito quer
trocar a escultura de pedra do rosto de Graciliano fincada na entrada da cidade
pela da família de Fabiano, de "Vidas Secas", o livro mais vendido de
Graciliano, hoje na 116ª edição.
A escultura foi colocada lá
por Alberico Cordeiro, prefeito, já morto, que governou Palmeira na década
passada e é tido, até hoje, como aquele que mais cultuou a imagem do escritor
na cidade. Até memorial quis edificar, mas foi vencido pela falta de recursos.
Uma das poucas informações
públicas disponíveis no site do Tribunal de Contas do Estado de Alagoas é a
lista (desatualizada) de contas municipais rejeitadas pela instituição. Lá
consta a de Palmeira dos Índios em 2005, quando a cidade era gerida por Cordeiro.
Em levantamento patrocinado pelo Instituto Ethos em 2012, o tribunal de Alagoas
foi considerado o segundo menos independente do país. Só perde para o de Mato
Grosso.
Além de "Vidas
Secas", o atual prefeito de Palmeira dos Índios diz ter lido os relatórios,
que chama de "documentários". A prestação de contas de Graciliano não
era exigida pela legislação da época. Oitenta anos depois, a lei exige que os
prefeitos prestem contas, mas até seus leitores mais atentos são privados de
acesso às de Palmeira.
Ribeiro,
56º sucessor de Graciliano, foi reeleito em 2012 com mais votos: há mais de 50
anos prefeito de Palmeira dos Índios não faz o sucessor
"Há quatro anos o
Tribunal de Contas não recebe nem vota as contas do município", diz
Vladimir Ivanovich Barros, um advogado e jornalista de 40 anos que foi
candidato derrotado na campanha que reelegeu Ribeiro. Filiado ao PCdoB, Barros
candidatou-se a vice de chapa liderada pela neta petista do prefeito que
Graciliano substuíra na prefeitura. Atribui seu nome e o dos irmãos (Dimitri e
Svetlana) à predileção do pai, Ivan Barros, promotor de justiça e jornalista,
por Dostoiévski e pelo socialismo soviético.
A sede do semanário fundado
pelo pai, "Tribuna do Sertão", fica num sobrado recentemente
reformado. A entrada é ladeada por esculturas de padre Cícero, frei Damião e
Tenório Cavalcanti, outro palmeirense ilustre. Apenas uma escada separa seu
escritório de advocacia da redação do jornal que dirige.
Antes de se sentar, pousa
sobre a mesa uma pilha de livros do pai, autor da biografia que melhor descreve
os entreveros do escritor com Sebastião Ramos. Tem um arquivo particular sobre
Graciliano, no qual consta a coleção de "O Índio", o jornal que
circulou na cidade no início do século XX e teve no escritor um de seus fundadores.
Nas edições encadernadas
que mostra, lê-se, entre poucos anúncios, o da Loja Sincera, o estabelecimento
comercial que Graciliano herdou do pai: "Preços sem competência". A
loja firmou-se com uma reputação de preços baixos onde não adiantava barganhar.
A fachada foi destruída, mas o prédio continua lá, ao lado da prefeitura, e
abriga uma unidade da Casa Guido, rede de varejo local. Uma faixa anuncia a
política de vendas: "Aproveite agora mesmo seu cartão Guido e parcele nas
compras em até 10 vezes sem juros".
No jornal de Vladimir a
maioria dos anunciantes vem de Arapiraca, a 38 km de Palmeira. A primeira
página sempre estampa uma moça de biquíni e denúncias, ora contra o governador,
ora contra o prefeito. Os aliados são os senadores Fernando Collor (PTB) e
Renan. Uma edição de fevereiro trazia reportagem de alto de página sob o título
"Garotinho confirma a força de Collor à Presidência" e artigo de
Renan, colaborador fixo. "Ele é como uma fênix que renasce das
cinzas", comenta o diretor de redação sobre seu colunista.
Renan é a única afinidade
comum entre os dois adversários, que se miram abaixo da cintura em seus ataques
recíprocos. Em casa, onde faz uma pausa para o almoço, Ribeiro deita falação
contra seus adversários.
Comenta o escândalo que o
envolveu em 2006 e o relaciona à morte do pai, por aneurisma: "Recebi do
Vedoin um cheque de R$ 5 mil para as camisetas de minha campanha, mas meu pai
nunca apresentou emenda para beneficiá-lo. É claro que Vedoin tinha a
expectativa de vender ambulância para a prefeitura, mas eu perdi a
eleição".
Escultura de pedra do rosto
de Graciliano fincada na entrada de Palmeira dos Índios pode ser trocada pela
da família de Fabiano de "Vidas Secas", o livro mais vendido do
escritor, em 116ª edição
A mulher, Mosabelle, uma
afilada morena de rabo de cavalo e colar de pedras, chega para almoçar. Um
cachorro, o único dos 11 da chácara a perambular pelo alpendre, se aproxima. O
hábito dos sertanejos de nomear seus cachorros por bichos do mar caiu em
desuso. O shar-pei de 8 anos chama-se John.
Mais carismática que o
marido, chama os serviçais da casa para sentarem-se à mesa posta no alpendre da
casa. Enfermeira, tem um cargo administrativo na Secretaria da Saúde, mas diz
que ganhava melhor como coordenadora de um hospital de Maceió.
Dos parentes acomodados na
prefeitura, o mais difícil de encontrar é o irmão de James, Lucas, que responde
pela Secretaria de Finanças. A pergunta sobre a prestação de contas do
município é recebida com estranheza. Todos no gabinete do prefeito conhecem o
relatório de Graciliano, mas ninguém parece ter muita familiaridade com a
prestação de contas da atual administração.
"Dessa contabilidade
quem cuida é Ivan", diz James, enquanto passa o celular com o contador da
prefeitura na linha. "Hoje ainda essa prestação de contas estará no seu
e-mail." Quinze dias e uma infinidade de requerimentos depois, o documento
continuava desconhecido - ou omitido - por prefeito, chefe de gabinete,
secretário particular, secretário de Articulação Política e secretário de
Finanças.
A prestação tampouco está
acessível no Tribunal de Contas de Alagoas, onde a requisição de uma informação
pública passa por quatro gabinetes e acaba represada no gabinete do presidente
da instituição.
Quem precisa das contas
daquele tribunal fica quase tão impaciente quanto o presidente do Supremo,
Joaquim Barbosa, que, nesta semana, chamou de lenientes os bancos retardatários
em prestar informações sobre lavagem de dinheiro.
As sanções previstas para
prefeituras que falhem em prestar contas não parece preocupar ninguém em
Palmeira. A Confederação Nacional dos Municípios informa que 80% das cidades do
país estão impedidas de fazer convênios com a União por inadimplência com o
Tesouro Nacional. E o PAC está aí para quem quiser obras sem quitar as contas.
Teotônio Vilela e Renan
Calheiros são os principais suportes de James Ribeiro na Prefeitura de Palmeira
dos Índios
Graciliano usava uma régua
para traçar as linhas que separavam receitas e despesas da prefeitura no
livro-caixa ainda hoje guardado no museu que leva seu nome e está instalado na
casa onde viveu. O museu é gerido por João Tenório, um dedicado funcionário da
prefeitura, que detém o acervo, mas não a casa, desapropriada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No museu, primeiras edições,
manuscritos e documentos originais do escritor deterioram-se pela ausência de
vitrines climatizadas, a despeito de reforma recente do Iphan.
Sem dinheiro para pagar o
aluguel de um estande, o museu corre o risco de ficar de fora da Festa
Literária Internacional de Paraty, que neste ano homenageia o escritor.
Enquanto mostra a casa,
Tenório é interpelado, pela janela, por uma moça que segura um capacete de
moto. "A seleção da Sadia-Perdigão já terminou?", indaga.
A empresa, hoje BRF, uma
das maiores indústrias de alimentos do país, não tem unidades em Alagoas, mas
recruta mão de obra em Palmeira dos Índios. Para gerar caixa, a prefeitura
aluga um precário auditório do museu para o recrutamento.
Os relatórios estão no
museu. "Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se
estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em
todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor
que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados", diz
o prefeito escritor na primeira de suas prestações de conta, ainda muito
desconhecida por seus conterrâneos.
Quando Graciliano decidiu renunciar
ao cargo, dois anos depois de ter sido eleito, para aceitar o de diretor da
Imprensa Oficial do Estado, o relatório já tinha feito sua fama literária no
Rio. O seu legado de administrador público é que foi engavetado. E não apenas
em Palmeira dos Índios.
James Ribeiro recebeu uma
folha de pagamentos com 22 meses de administrações anteriores, inclusive a de
seu pai. A antessala do gabinete é permanentemente lotada de funcionários com
precatórios a receber e palmeirenses em busca de emprego.
Diz não entender de
contabilidade, mas desenvolve a seguinte métrica para conseguir dinheiro
federal: "Com a renegociação da dívida tiramos a certidão negativa e
conseguimos o empenho dos recursos. Quitamos a primeira parcela, mas não
estamos conseguindo pagar as outras. São cinco milhões apenas de dívidas com o
INSS. Aí vamos ter que renegociar de novo e pagar outra parcela para conseguir
mais uma liberação".
Das 20 mil famílias de
Palmeira dos Índios, 11 mil participam do Bolsa Família: já não se veem os
mendigos da época de Graciliano, mas a fila para o recadastramento no programa
de transferência de renda dá a volta no quarteirão
Como a maioria das
prefeituras do país, a de Palmeira dos Índios tem uma arrecadação pífia. Quem
sonega? "Os bancos, pode pôr aí", diz o prefeito, enquanto encomenda
os dados da receita de ISS e IPTU. Diz ter enviado projeto à Câmara de
Vereadores propondo um perdão de até 90% dos juros das dívidas dos
contribuintes que decidissem regularizar sua situação fiscal. "Não teve
adesão", lamenta.
Um papel lhe chega às mãos
e informa uma inadimplência de 80% dos tributos municipais. E, para sua
surpresa, lista como maior devedor do município um clube, em cuja diretoria têm
assento secretários do prefeito, como seu chefe de gabinete, José Clóvis Leite,
sobrinho-neto do escritor e o único da família a se aventurar na política com
um mandato, já findo, de vereador.
No segundo relatório
Graciliano conta ter dobrado a arrecadação e narra as dificuldades. Faz 80
anos, mas parece hoje: "O esforço empregado para dar ao município o
necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos
administrativamente originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder
sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos
apenas com os pobres-diabos em proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa
aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo
de obras públicas à Federação, ao Estado ou, na falta deles, à Providência
Divina".
Hoje a Prefeitura de
Palmeira dos Índios tem 1.992 funcionários. Na época de Graciliano, eram 11. E
o escritor prefeito resistia a aumentar o quadro: "Dos funcionários que
encontrei em janeiro do ano passado restam poucos. Saíram os que faziam
política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são
necessários, cumprem suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas.
Devo muito a eles".
Como em toda prefeitura, os
gabinetes administrativos hoje são lotados, mas faltam médicos no único
hospital da cidade. Promovem-se concursos públicos em atendimento à lei, mas os
apadrinhados forçam a fila.
O labirinto de gabinetes da
Prefeitura de Palmeira dos Índios está sempre apinhado de gente esperando para
falar com o prefeito. Ao atravessá-lo, James Ribeiro é abordado ao pé do
ouvido, e responde baixinho: "Não posso, se eu chamar fora do concurso o
Ministério Público dá em cima de mim".
"Já vim aqui quatro
vezes e não consegui falar. Da próxima vez vou lá na casa dele. Fiz isso uma
vez, às 6h30 já 'tava' lá", diz um servente de pedreiro que busca emprego
e aguardava Ribeiro às 7 horas em frente da prefeitura.
Já não se veem os mendigos
da época de Graciliano, mas a fila para o recadastramento no Bolsa Família dá a
volta no quarteirão.
Seu código municipal
proibia a mendicância. Mas a medida de maior eficácia foi convocá-los ao
trabalho. Reuniu os pedintes e perguntou quanto recebiam de donativos.
Ofereceu-lhes o dobro para que construíssem um muro. Foram um dia e depois
sumiram. Para as estradas que se orgulhava de ter construído, mandou buscar os
presos.
Em palestra que fez por lá,
o economista Cícero Péricles, organizador do minucioso "Almanaque dos
Municípios Alagoanos", traduziu Palmeira dos Índios em números: o IBGE
encontrou 20 mil famílias na cidade, sendo 11 mil cadastradas no Bolsa Família.
A frequência dos
beneficiários à escola é quase total. O prefeito se orgulha de ter cumprido a
meta de avanço do Ideb, o que devolveu ao município o selo Unicef, medalha
alcançada por 10% das cidades do Estado. As escolas estão sendo reformadas, o
almoxarifado é lotado de livros didáticos enviados pelo MEC e a merenda, a
despeito das denúncias de superfaturamento, abarrota os freezers.
As crianças chegam à aula
uniformizadas e puxando suas malas de rodinhas estampadas pelo desenho animado
da moda. As escolas exibem cartazes com os alunos premiados em olimpíadas e
concursos nacionais.
Um deles é José Wallace dos
Santos. Filho de agricultores e aluno de uma escola rural do município, foi
selecionado em 2010 pela embaixada americana para intercâmbio que culminou com
uma entrevista com Michelle Obama na Casa Branca. Hoje, aos 19 anos, é aluno de
direito de uma faculdade privada em Arapiraca, estagia no Ministério Público,
dá aulas de inglês e é presidente do PMDB jovem.
Articulado, vestido com uma
camiseta que trouxe de lembrança da Flórida, cita a professora que enxergou sua
facilidade para línguas e o diretor da escola que equipou todas as salas com ar
condicionado. Foi lá que conheceu Graciliano, de quem cita "Vidas
Secas". Nunca ouviu falar dos relatórios do escritor prefeito.
Os pais de Wallace integram
o contingente que recebe o maior volume de recursos federais do município, o de
aposentados. Em Palmeira dos Índios a Previdência tem 22 mil beneficiários. Em
valores, o INSS leva para a cidade quase dez vezes o montante do Bolsa Família
e mais do que o dobro das transferências municipais.
Corre pouco dinheiro de
iniciativa privada na cidade. Os maiores empregadores privados são os
laticínios. Não se entabula uma conversa de dez minutos com alguém sobre
Palmeira que não passe pela comparação, sempre nostálgica, com Arapiraca. O
Cine Palácio, uma sala de projeção com folhas de eucalipto espalhadas no chão,
é lembrado como o apogeu de uma Palmeira que já se foi.
O polo industrial que está
a caminho e as cinco faculdades já instaladas na cidade podem até aproximar a
diferença entre as duas economias, mas hoje um fosso de lamentações as separa.
Até a década de 1970 os moradores de Arapiraca se deslocavam até Palmeira para
fazer compras. Com o fumo, que fomentou a agroindústria do lugar, a economia
bombou e hoje Arapiraca, além de uma população três vezes maior, ultrapassa
Palmeira na arrecadação de ISS 35 vezes.
Sócio de um dos laticínios,
o Bona Sorte, Roberto Amaral oferece uma explicação à la Graciliano para a
decadência de Palmeira. Médico veterinário formado pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco, nascido na família com maior tradição leiteira de Alagoas,
Amaral é um entusiasta do palmeirense, ainda que não seja nascido na cidade.
Credita na conta dos
trabalhadores a produtividade da indústria leiteira da região, que diz ser
maior que a de Minas, principal produtor de leite do país. Conta que a Justiça
do Trabalho é pouco requisitada na região. A rede de supermercados que é sócia
majoritária do laticínio tem 17 lojas no Estado. A que enfrenta menos processos
trabalhistas é a de Palmeira.
Em duas horas de conversa
não menciona a seca. "Não falta água em Palmeira. Se a população fica
desabastecida, é pela gestão da Casal [a companhia de águas do Estado]."
No dia anterior, um emissário
do prefeito havia sido despachado para Santana do Ipanema, onde o governador
estava, para "pedir pressão no Gilberto Carvalho" pelo perdão da
dívida dos agricultores de Palmeira.
Fachada da Prefeitura de
Palmeira dos Índios ao lado da loja que foi do escritor: hoje, o órgão tem
1.992 funcionários; na época de Graciliano, eram 11
Enquanto explica sua tese
sobre a decadência de Palmeira, Amaral mostra imagem no Facebook de Nossa
Senhora do Amparo, que Graciliano descreve em "Caetés" e ainda hoje
está guardada na catedral. Dois rapazes que trabalham lá também desconhecem que
"São Bernardo" foi escrito naquela sacristia.
A tese do empresário é que
Palmeira é vítima da "síndrome das cidades antigas". As gerações mais
velhas expulsaram os jovens inovadores. Os empresários não deixaram os filhos
informatizarem seus estabelecimentos e os políticos resistiram a sucessores que
quiseram modernizar a administração pública.
Foi assim com Luciano
Barbosa, nascido em Palmeira dos Índios e emigrado para Arapiraca, de onde
partiria para o Ministério da Integração Nacional no governo FHC e se tornaria
um dos prefeitos mais dinâmicos da cidade, que já conta com cinco administrações
do mesmo grupo político. Nos últimos 50 anos, prefeito de Palmeira dos Índios
nunca fez o sucessor.
Não teria sido essa também
a história de Graciliano? Nas cartas à segunda mulher, Heloísa, com quem,
viúvo, se casou no mês seguinte à posse, dava a entender que não se achava com
vocação para a coisa - "Para os cargos da administração municipal escolhem
de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na
cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e
qualquer dia renuncio" -, mas seus principais biógrafos, entre os quais
dois de seus filhos, Clara e Ricardo, concordam que a reação que enfrentou no
cargo contribuiu para sua partida de Palmeira.
Valdemar de Souza Lima tem
o melhor relato de uma das brigas mais notórias em que se meteu o prefeito
escritor. Na manhã do sábado seguinte à sanção do código municipal, Graciliano
foi procurado na loja Sincera por um vereador que também era açougueiro.
Reclamava do fiscal da prefeitura que fora cobrar o imposto antes do corte da
vaca.
Graciliano lhe explicou que
assim previa o novo código. O vereador, que se chamava Capitulino, contestou,
dizendo ignorar aquela lei. Começou o bate-boca e o prefeito findou se
exaltando: "Você quer saber de uma coisa, Capitulino? Eu não tenho culpa
de você ser burro, assinar papel no escuro".
Márcio Henrique Carvalho é
um sucessor de Capitulino na Câmara Municipal de Palmeira dos Índios, um prédio
encravado do outro lado da prefeitura com um alto-falante do lado de fora que
irradia as sessões. Não é açougueiro, embora quando esteja de plantão no
Instituto Médico Legal de Arapiraca, principal termômetro da violência
crescente da região, possa se confundir com um.
Está no primeiro mandato de
vereador, pelo PPS, mas já passou por PHS, PMDB e PSC. É um dos 3 únicos
vereadores de oposição, numa legislatura com 15 parlamentares. Nas sessões de
estreia apresentou dois sisudos requerimentos de informação ao prefeito, um
sobre a Previdência Municipal, que se suspeita quebrada, e outro sobre uma
anunciada reforma administrativa.
Na campanha, conta,
recusou-se a ir a comícios em que antevia discursos apelativos. "Não
queria ser obrigado a concordar com a acusação de que meu adversário entra em
rinha de galo ou gasta no jogo. Quero que as pessoas votem em mim porque sou
melhor, não porque o outro é pior", diz, enquanto se serve no restaurante
do primo, vizinho à prefeitura.
Foi signatário do
abaixo-assinado virtual que pediu a saída de Renan do Senado. "Dizem que
ele é um mal necessário para Alagoas. Será?" Eleitor de Luiz Inácio Lula
da Silva contra Collor e Fernando Henrique, desiludiu-se em 2010 e votou em
Marina Silva.
Conta que, durante a
campanha, recusou-se a prometer um posto de saúde a uma comunidade carente da
cidade. "Não podia prometer, mas me ofereci para levá-los à Câmara e à
prefeitura para pressionar. Se prometesse, teria que assumir compromissos na
prefeitura que não posso ter."
Ao ser abordado por um
guardador de carro que pede um ingresso para o jogo do CSE, diz ao moleque que
passe no seu consultório.
É o único dos entrevistados
que cita "Angústia", tido como o livro mais pessoal de Graciliano e
cujo personagem principal, Luís da Silva, é considerado por Antonio Candido o
mais dramático da literatura brasileira.
Médico pneumologista, tem
dois tios na galeria de fotos da prefeitura. Da última, Maria José, foi
secretário de Saúde. Reconhece-lhe a gestão pouco hábil. Foi esse governo que,
somado ao do pai de James Ribeiro, contribuiu para o atraso de 22 meses na
folha de salários da prefeitura. Durante o governo do outro tio, Enéas
Simplício, ainda não tinha ingressado na política.
"Foi um dos poucos
aqui a reproduzir o espírito de Graciliano", diz Ricardo Vitório,
promotor, radialista e ex-vice-prefeito de Helenildo. Era adversário de Enéas,
mas reconhece-lhe a retidão.
"Para a maioria, a
prefeitura é um troféu", lamenta, sem deixar de reconhecer que Palmeira
nunca teve tantas obras quanto hoje.
Mostra a cidade do alto do
Cristo de Goiti, no ponto mais elevado da cidade. Nascido em Quebrangulo, como
Graciliano, guarda outra coincidência biográfica com o escritor. Também perdeu
a mulher no parto de sua segunda filha.
Não vê benefícios para o
Estado com a proeminência de Renan e Collor na política nacional. Credita
grande parte da decadência da cidade à desunião de suas lideranças políticas, a
mesma que, 80 anos atrás, levou Graciliano a deixar a cidade.
Longe de Palmeira, o
escritor não deixaria de demonstrar sua admiração por administradores públicos
que tentavam civilizar aquele canto do Brasil. Artigos inéditos, recentemente
publicados por Thiago Mio Salla, mostram que o escritor não se considerava
desgarrado de um covil de ladrões.
Naquela última semana de
fevereiro, uma mensagem do humorista paulista Luciano Manfredini bombou no
Facebook: "Tinha que tacar uma bomba no Senado e em Alagoas, assim essas
crias do inferno não proliferariam mais. Alagoas é um ninho dessas pestes, uma
ratoeira. Taca uma bomba naquele Estado que só manda vagabundos, bandidos,
calhordas do naipe de Renan Calheiros e Fernando Collor infectarem nosso
país".
Ameaçado por um processo, o
humorista acabou se desculpando, mas houve quem fizesse alusão à entrevista
dada por Graciliano a Joel Silveira. Nela, Graciliano diz que se Alagoas
sumisse do mapa poderia dar ao país o golfo que lhe falta. O escritor remoeria
até o fim da vida a delação de seus conterrâneos que lhe renderia a prisão no
Estado Novo contada em "Memórias do Cárcere".
As fotos em exposição no
museu trazem à lembrança outra passagem da relação de Graciliano com sua terra.
Em Paris, escala de uma viagem à Rússia, a convite do governo soviético,
passeava às margens do Sena, quando a mulher, Heloísa, lhe perguntou onde
nasceria de novo. O diálogo é reproduzido por Dênis de Moraes.
- No Brasil, em Alagoas
- Mas em Alagoas, onde?
Você nasceu em Quebrangulo, morou em Viçosa, Palmeira dos Índios e Maceió.
- Em qualquer desses
lugares, não importa, desde que seja em Alagoas. Tudo isso aqui é muito grande,
muito bonito, muito desenvolvido, mas é deles. Eles levaram séculos para
construir. Nós ainda estamos engatinhando, mas um dia chegaremos lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário